sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

até os grandes Homens se enganam...

Foi meu Mestre. E nunca esquecerei a primeira aula: com uma parafernália de tubos e líquidos, num anfiteatro quase vertical, em profundo silêncio, começou por misturar dois fluidos transparentes que se transformaram em encarnado, depois um outro que converteu a mistura em algo azul, e por aí fora até, num gesto de alquimista e de mágico, juntar novamente um outro líquido esverdeado que devolveu à mistura o seu transparente original. E terminou com a frase: "Meus senhores, isto é a química!", dando a aula por terminada.

António Gedeão, o grande poeta, foi Rómulo de Carvalho, o meu professor. E quer um quer outro marcaram-me intensamente, pelo estilo, pelo rigor, pela sua distância em relação às coisas comezinhas, reveladora de uma enorme maturidade, E também pela sua simpatia pessoal.

Há, no entanto, um aspecto em que sempre estive em desacordo, mas infelizmente nunca tive a oportunidade de o debater com o próprio. No seu poema: “Anti-Anne Frank”, Gedeão traça o retrato de uma criança “esquálida”, que “nunca escreveu diário, nem nunca foi à escola”, “nem despertou o amor de editores piedosos”. “Batem-lhe, pisam-na, insultam-na, sem que ninguém se importe (...) até à morte”.
E depois de dizer “nem rastejou num sótão, nem se chama Anne Frank”, conclui que “até no sofrimento é preciso ter sorte”.

No dia 4 de Agosto de 1944, Anne Frank foi capturada pela Gestapo, aos 15 anos de idade, depois de mais de dois anos de isolamento num anexo da casa onde vivia, em Amsterdam. Foi aí que escreveu o seu “diário”, muito mais tarde publicado em todo o mundo. A casa onde esteve escondida, pode-se visitar, e está praticamente como antes: quando a percorremos atrevemo-nos a calcular o que pode ter sido a sua angústia, o medo e a perplexidade perante a barbárie.

Deportada para Auschwitz e depois para Bergen-Belsen, veio a morrer nesse campo de concentração escassos dias antes da libertação. Foi batida, pisada, insultada e ninguém se importou. E nem sequer por um mero acaso do destino, mas por ser judia. Foi esse o seu crime.

Pobres crianças esquálidas. A do poema. Mas também Anne, professor Rómulo, poeta Gedeão. Sofreu e não teve sorte. Nem sequer soube que o seu diário, tão minucioso como pungente, seria algum dia publicado, por editores, “piedosos” ou não. Para Anne Frank o holocausto não rendeu juros.

Até os grandes homens cometem erros (talvez seja essa a agradável dimensão humana que nos separa dos impenetráveis deuses) – a este poema faltou a última gota, que teria devolvido ao sentido histórico, como o líquido da proveta da aula de Química do Pedro Nunes, a sua transparência original.

2 comentários:

All Varo disse...

Vale a pena ir a Amsterdão de propósito para visitar a casa de Anne Frank. Nela, deixamo-nos trespassar pela emoção e ficamos com menos certezas arrogantes! Anne existiu, a sua dor ocorreu, o seu testemunho perdura. Para sempre!

Graça disse...

De facto, o poema de António Gedeão causa a impressão que o post transmite, ficamos a pensar que o autor terá exagerado. Mas se relevarmos a crítica a Annne Frank e nos centrarmos na mensagem central do poema, descobriremos que é actualíssima e se prende sobretudo com o facto de haver tantas crianças que sofreram e sofrem tanto como Anne e de que não reza a história. Anne, pelo menos, ficou na história (não que isso seja uma sorte, é claro), mas quantas crianças não sofreram sem que o mundo soubesse e se condoesse delas? Sem que ninguém visitasse a sua antiga casa e se lembrasse delas? Sem que ninguém lhes desse nome de rua ou de escola?
O que Gedeão não disse e talvez devesse, é que ainda bem que Anne conseguiu escrever, porque ela empresta assim o seu nome e sua voz a todos os que sofreram anonimamente e em silêncio.