sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Pai


O meu pai era grandioso, justo, e de uma corpuratura imensa. Um dia, uma mulher definiu-o um gigante eurítmico. Era bonito e corajoso como o herói de um romance de aventuras e a sua coragem era uma coragem verdadeira, a coragem de quem vence o medo pelo sentido de justiça e deseja endireitar o que de torto encontra na vida. Mas era também forte por natureza, cada murro seu era um atestado de óbito. Vi-o lutar contra sete e sair sem uma beliscadura.
Comigo foi de uma docura maternal, um pai-mãe que, por vezes, me parecia também um pouco meu filho. Era louro e tinha os olhos verdes, da mesma cor do lago Trasimeno nos dias de ligeira neblina. Era diferente de qualquer outro homem porque conhecia a profunda tristeza sem motivo, os longos suspiros melancólicos, a imprecisão de saber-se lá que destino.
Nas noites de Verão, gostava de olhar para as estrelas e de ouvir cantar os grilos e de imitar para mim, quando eu era menina, o seu lamento. As poucas vezes que me respondeu fê-lo apenas com a força das suas palavras. Pegava-me ao colo ou então sentava-me em cima de uma mesa e falava comigo com um tom de voz forte e persuasivo. Dizia-me coisas sensatas, às vezes também furibundas, porque aquela era a sua maneira de viver a vida: a sensatez dos males extremos e dos extremos remédios. Recordo-me de sempre o ter entendido muito bem e de ter sempre feito bom uso dos seus conselhos. Entendíamo-nos porque tínhamos o mesmo latejar da carne interior, a consciência recíproca de em alguma outra vida anterior ele ter estado no meu ventre e eu no dele. Éramos amigos e entre nós não havia segredos porque gostávamos de falar das súbitas alterações de humor, daquilo que pode deixar-nos tristes e logo a seguir alegres, da grandeza das inúmeras vozes que sentíamos dentro da alma. E assim, dizia-me, Podemos desejar ao mesmo tempo a morte e o renascimento. E eu respondia-lhe que tinha razão, que era assim a vida. Gostava de lhe beijar os olhos porque tinha as pálpebras mórbidas e sempre um pouco quentes. Em contrapartida, ele gostava de me ensinar algum golpe de luta livre dizendo que poderia vir a ter necessidade disso, um dia em que ele não estivesse presente para me defender; ou então, de me falar de Homero, porque gostava muito daquele verso que diz: "Os deuses tramam e executam a perdição dos mortais a fim de que as gerações que nascem tenham alguma coisa para cantar." E quando estava em paz consigo mesmo e não queria castigar o mundo, repetia sempre outro verso do mesmo poeta: "Ulisses trazia em si de todos os mortais o coração."
Era diferente de todos os outros homens porque conhecia a grande alegria, a súbita revolta do sofrimento, o optimismo despropositado. E então, enchia-se, todo ele era um projecto de futuro e fazia o verso longo e agudo do vento dos campos. Dizia, Sou um pedaço de terra, puro fermento. E eu pensava, Oxalá te nasçam flores no peito o mais tarde possível, meu adorado.
Este, porém, era o meu pai, não os pais dos outros.


(Romana Petri- OS PAIS DOS OUTROS. Edição: Cavalo de Ferro, 2005. Fotografia de Carlos Morales-Mengotti)

1 comentário:

Anónimo disse...

Encontro neste Pai inúmeras características de meu Pai. Vencer o medo pelo sentido de justiça é uma delas. Também eu julgo padecer deste sentimento. No entanto sinto-o desvanecer-se nos momentos em que mais preciso dele (da coragem para vencer o medo, entenda-se). Ou será que, em lugar da ausência de coragem, me apercebo da falta de compreensão e inteligência emocional do outro? E que consequências poderia ter a vitória sobre o medo na minha vida? O mundo está diferente porque as pessoas também. Haverá ainda (lugar para pessoas e) pais assim?